Zero Hora: Comportamento de alunos em sala de aula é desafio após dois anos de ensino remoto
O aluno não consegue ficar muito tempo parado diante do quadro. Acaba interrompendo a fala do professor, porque quer falar também. Se tem vontade de sair da sala, levanta-se e passa pela porta, sem dar explicações. São comportamentos que mostram uma dificuldade dos estudantes com a rotina das aulas presenciais, hábito que precisa ser reconstruído após dois anos de ensino em casa durante a pandemia.
O cenário era esperado, já que a escola é um dos principais ambientes de aprendizagem social do ser humano, observa a neuropsicóloga Rochele Paz Fonseca, coordenadora da Rede Nacional de Ciência para a Educação (CpE) e professora da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). O dilema, segundo ela, é ainda maior no Brasil, um dos países que por mais tempo permaneceram com as instituições de ensino fechadas.
Agora, é necessário paciência para que crianças e adolescentes voltem a saber se comportar em sala de aula. É um processo que vai levar tempo.
— O cérebro precisa de meses para recuperar um hábito. O professor precisa lidar com isso com doses de afeto, além de firmeza e disciplina. Mas disciplina não é autoritarismo. É mostrar quais são as regras que vão organizar um aluno de dentro para fora — diz a neuropsicóloga.
Foi justamente a falta de convívio social, dizem profissionais da educação ouvidos por GZH, que fez crianças e adolescentes retornarem mais inquietos às escolas. São alunos mais arredios, com problemas para seguirem as regras, como se tivessem desaprendido a ficar em sala de aula.
O desafio é gigante para quem está à frente da turma, tentando passar as lições. É o caso da professora Paola da Costa Silveira, que há oito anos dá aulas para turmas do Ensino Médio em uma tradicional instituição da rede pública de Porto Alegre.
— Eles não sabem mais como é a convivência no coletivo escolar. Já não sabem mais como se age dentro da escola. Eles simplesmente saem da sala sem avisar aonde vão, como se nada tivesse acontecido. Eles vêm de dois anos de aulas remotas, acostumados a ligar o computador e a perambular pela casa para tomar água, ir no banheiro. Não estão mais acostumados a ficar parados na sala, a ficar horas sentados numa cadeira. E eles mesmo dizem que não conseguem mais ficar tanto tempo sentados — conta.
A ex-diretora da escola onde Paola leciona teve uma experiência negativa pouco antes de sair do cargo, há cerca de três semanas. Um grupo de estudantes atirava bolinhas uns nos outros enquanto o professor tentava explicar a matéria. Ela entrou na sala para pedir ordem, mas não teve sucesso.
— Entrei na sala para falar, e eles não me respeitaram. Alunos do sexto, sétimo ano. Mandavam eu ficar quieta porque eles queriam falar. Fico pensando o que aconteceu nesses dois anos para essas crianças perderem o mínimo de educação. Não sei responder, porque não sou psicóloga — desabafa, pedindo para não se identificar.
Ela diz que nunca, em 18 anos de experiência, viu alunos tão rebeldes. Marcou uma reunião com os pais, pedindo que as famílias colaborassem. Afastou-se da escola logo depois, mas garante que foi por motivos pessoais.
— Fiz uma reunião com os pais e coloquei que a situação é muito desgastante. Dá vontade de largar tudo e sair correndo. Mas saí por motivos particulares — diz.
Os alunos também sofrem
Para os alunos, retomar uma rotina marcada por regras e limites também é um grande dilema, já que se acostumaram a ter as lições na sala ou no quarto de casa, onde as coisas funcionam conforme a rotina da família.
Quem ouviu adolescentes de oito escolas nesse retorno à sala de aula foi a coordenadora da Rede La Salle, Maria Elisa Schuck Medeiros. Ela reforça que os jovens também têm seus pontos de vista.
— Eles dizem que a escola retornou para as aulas presenciais como se não houvesse tido dois anos de pandemia. Dizem que, no online, estavam mais tranquilos, relaxados, sem se importar com horários. Se estavam cansados, deitavam na cama e dormiam. Hoje, acaba batendo a ansiedade, porque a escola está tocando os conteúdos como se nada tivesse acontecido — observa.
A vontade de conversar olho no olho com os colegas, vínculo que ficou restrito às mensagens no WhatsApp durante a pandemia, é apontada como a necessidade mais urgente nessa volta à escola.
— Eles voltam com desejo de interação, de rever os amigos. Os adolescentes são puro afeto. Eles voltam querendo contato, muito mais do que querendo aprender uma matéria — reforça a coordenadora da Rede La Salle.
Os pequenos também estão com dificuldade de ficar em sala de aula. Há desde problemas básicos, como tirar o material da mochila por conta própria, o que é encarado como uma perda de autonomia, até o impasse da convivência.
— As crianças estão olhando só para o eu, e não para o coletivo, que é algo necessário para ficar em sala de aula. Elas precisam de apoio para compreender que uma sala de aula tem regras — diz a orientadora educacional Mariana de Souza Arieta, que atua com as séries iniciais do Colégio Rosário, instituição particular de Porto Alegre.
O relato de que os alunos estão mais inquietos do que nunca é recorrente entre os professores, garante a diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro-RS), Cecília Farias. Lidar com a agitação de uma turma inteira é missão que se soma à de recuperar conteúdos que ficaram perdidos nos dois anos de aulas online, o que sobrecarrega os profissionais.
— Houve uma quebra em tudo o que foi construído para tornar o ambiente da sala de aula mais saudável. Agora, o professor precisa, além de tudo, dar conta de alunos que não conseguem ficar sentados. Eles levantam, vão até o colega, querem sair da sala para dar uma volta. Tudo isso tem dado para o professor um trabalho físico e mental gigante — diz Cecília.
O Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe-RS), por sua vez, confirmou que as escolas particulares têm presenciado uma mudança no comportamento dos alunos. Algo esperado após um longo período de isolamento social, observa a assessora pedagógica da entidade, Naime Pigatto:
— A sociedade está vivendo um momento único, de ressignificar costumes e hábitos sociais. Nos acostumamos a ficar isolados e agora precisamos reaprender a conviver. É esperado que isso também esteja acontecendo nas escolas.
A Secretaria Estadual de Educação (Seduc) não se manifestou sobre o momento encarado como atípico pelos profissionais da educação. Na avaliação de todos os que foram ouvidos pela reportagem, é um contexto que demanda atenção especial. O Sinepe-RS informou que em breve fará uma formação para orientar as escolas.
Alunos marcados pela pandemia
Psicanalista de crianças e adolescentes, Celso Gutfreind, autor do livro A Nova Infância em Análise (Artmed), diz que é natural que os jovens testem os adultos para entender quais são os limites. É um comportamento típico da idade, que precisar ser respondido com firmeza, mas também com carinho.
Por outro lado, comportamentos mais rebeldes também podem ser um pedido de ajuda. Não foram só os adultos que sofreram com uma crise como a pandemia: muitas crianças e adolescentes viram pessoas adoecer, pais perderem os empregos, tiveram até mortes na família. São traumas que vão além da privação do convívio com colegas e amigos.
— A dificuldade com as regras pode ser sinal de que os alunos vêm de um ambiente de sofrimento em casa, onde houve um momento de perdas, onde muita gente adoeceu, até morreu. As famílias foram transformadas pela pandemia, atravessadas por incertezas financeiras. Foi um grande trauma — diz o psicanalista.
Apesar do cansaço incomum decorrente da agitação dos estudantes, a própria professora Paola da Costa Silveira conseguiu perceber que alguns voltaram à sala de aula marcados pela tragédia da covid-19.
— A rebeldia vem do fato de que eles ficaram em isolamento, perderam familiares, gente na família que ficou com sequelas graves. Isso tudo deixa eles muito estressados. Mas os professores não sabem exatamente como agir com alunos estressados, que estão em vivência de luto pós-covid — confessa a professora.
Tempo para reaprender
Assim como precisaram se adaptar ao ensino remoto, agora os estudantes também precisam de tempo para lembrar como é estar em sala de aula. O que não dá para ignorar é que, nesses dois anos de pandemia, eles ficaram ainda mais tecnológicos, já que tiveram de aprender a estudar no computador de casa ou no celular dos pais.
Propor atividades que explorem esse perfil mais conectado pode ajudar a manter o interesse nas aulas, diz o psicoterapeuta de crianças e adolescentes, Chrystian da Rosa Kroeff, professor de Psicologia da Unisinos e especialista em neuropsicologia.
— É interessante que as escolas proponham tarefas que não sejam iguais ao tempo antes de pandemia. Elaborar dinâmicas na sala de aula que confiram mais interação entre os colegas, mais afeto, até usando as tecnologias a favor da aprendizagem. Se eles dominam os celulares, como podemos incluir isso? Não dá mais para querer que os alunos tenham uma posição passiva na sala de aula — aponta.
Também é importante que as regras para o bom funcionamento da turma sejam novamente ensinadas. Segundo Kroeff, embora os jovens gostem de questionar os adultos, sentem-se menos perdidos quando conhecem os limites.
A saída, diz a neuropsicóloga Rochele Paz Fonseca, é repetir tudo novamente. Para isso, o professor pode lançar mão de estratégias, como a recompensa. Funciona assim: ao fim de cada trabalho que precisa ser feito em sala de aula, basta dar uma gratificação.
— A cada trabalho realizado, dar cinco minutos de bagunça para eles. E repetir as regras, dando tempo ao tempo para que os jovens voltem a entender que as regras tornam um ambiente melhor — diz.
Investir em atividades que ajudam a liberar a energia contida pode ser benéfico para aqueles alunos com dificuldade em ficar horas sentados ouvindo uma explicação.
— Faz a turma levantar, organiza uma aula em pequenos círculos. Caso contrário, os professores vão ficar frustrados e os alunos vão se sentir péssimos porque não conseguem ser o que o professor deseja — aponta Rochele.
A ordem na sala de aula precisa ser restabelecida, mas com diálogo e afeto, sugere Celso Gutfreind:
— É aos poucos, com firmeza e com carinho, com uma ternura firme, que devemos lembrá-los das regras.