Entrevista | “Tem muita criança que fica sem vaga”, diz Juliana Moreira

Santa Maria vive um problema gravíssimo na Educação Infantil: de acordo com dados do Tribunal de Contas do Estado (TCE), a cidade tem um déficit de 5.255 vagas na rede municipal. Há 12 creches projetadas, mas, destas, cinco estão com as obras atrasadas, mais cinco ainda nem começaram a ser construídas e outras duas aguardam licitação. Ainda que todas as creches ficassem prontas e estivessem em funcionamento, somente 2 mil crianças teriam atendimento. Ou seja: pelo menos cerca de 3 mil vagas ainda seriam necessárias. A Secretaria de Município de Educação, para remediar o problema, impôs às escolas que não houvesse mais atendimento em turno integral.

Para explicar tal situação – e também para traçar um panorama da Educação Infantil no país e no mundo – o Primeira Classe conversou com a professora e pesquisadora Juliana Moreira, da Escola Municipal de Educação Infantil Luizinho De Grandi. Juliana, que possui especialização em Docência na Educação Infantil pela Universidade Federal de Santa Maria e agora cursa o mestrado, trabalha com crianças de zero a cinco anos desde 2009.

 

Quando a Educação Infantil passa a ser uma política de Estado no Brasil? O processo ocorrido aqui é paralelo ao de outros países?

A Educação Infantil passou a ser uma política de Estado no Brasil com a Constituição de 1988, que é quando a criança passou a ser considerada um sujeito de direito. Antes, a Educação Infantil surge com um caráter assistencialista, como um atendimento às mães trabalhadoras. Frequentar a escola passa a ser um direito das crianças mais jovens a partir da Constituição. Vieram, a partir daí, outras leis que reafirmam isso – como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – que situa a Educação Infantil dentro do sistema educacional como primeira etapa. As políticas específicas nascem desse contexto. As Diretrizes Curriculares Nacionais são de 2009, ou seja, é tudo bem recente. As pessoas ainda estão se apropriando disso. Estamos ainda em uma caminhada, um processo. É difícil, devido ao longo tempo no qual a Educação Infantil era interpretada como uma assistência às famílias, desconstruir um pensamento assim. Resumidamente, a gente tem como indícios de mudança de política de Estado a Constituição de 1988, a LDB e as Diretrizes. A LDB diz que a Educação Infantil deve articular o cuidado com a educação. A Diretriz que norteia nosso trabalho diz que a criança é o centro do processo e os eixos norteadores devem ser a interação, as brincadeiras e a educação a partir de processos cotidianos. Isso quer dizer que a Educação Infantil tem uma especificidade: o planejamento do professor tem que partir da observação que ele faz da própria ação da criança. O professor traz uma proposta e observa sua prática; muda, então, com o que as crianças apresentam, falam através de sua linguagem própria.

 

Esse processo é tardio no Brasil?

Eu não diria “tardio”, mas certamente há lugares onde a Educação Infantil vista de uma maneira mais contemporânea é mais consolidada. É possível que essa ideia tenha vindo de fora. A Constituição muda esse quadro a partir de lutas sociais – não somente de famílias de trabalhadores, mas de estudiosos e teóricos brasileiros também. Aí então que ocorre essa mudança no Brasil. Até mesmo pelas famílias que exigem um ambiente mais qualificado para seus filhos. Mas, obviamente, em alguns lugares ainda acontece de as escolas serem “depósitos de crianças”. São muitos fatores. Até o conceito de infância influi – por isso não falamos em “infância” no singular, mas de “infâncias”. Até mesmo dentro de uma sala de aula o conceito podemos perceber essas diferenças.

 

E aqui em Santa Maria, quando é possível notar alguma mudança?

Antes do ano 2000, as creches ficavam a cargo da Secretaria de Assistência Social e as pré-escolas dentro das EMEFs. Havia um caráter educacional, mas também fortemente preparatório. Hoje em dia não é – ou não deveria ser – mais assim. As creches, como Assistência Social, cuidavam apenas de alimentação, higiene e cuidado. A partir de 2000, até por conta da regulamentação criada pela LDB, as creches passam a ser geridas pela Secretaria de Educação. Muda a concepção do que é uma creche. As pré-escolas também passam por mudanças. Não é apenas mais uma antecipação do Ensino Fundamental.

 

Pedagogicamente, como a senhora observa a Educação Infantil nos tempos atuais e no passado? Há novas tendências pedagógicas emergindo?

Eu penso que a educação infantil, por ter um caráter recente – a Constituição é de 1988, mas as Diretrizes são de 2009 – é muito desafiadora. É uma construção diária. Quem vem das escolas nota que aqui nos Anos Iniciais é e deve ser diferente. Não sei se podemos chamar de “corrente pedagógica”, mas há a construção de uma pedagogia da infância.

 

Aqui na cidade, como a senhora analisa o panorama da E. Infantil? Quais são os grandes empecilhos na busca por qualidade? Quais foram os avanços?

Eu trabalhei em duas instituições até hoje – o que me permite falar melhor de minha experiência do que de um panorama mais amplo. Temos muitos desafios e muitos avanços. Aqui na Luzinho De Grandi nós temos bastante cuidado com isso, mas a cidade em geral deve melhorar muito no quesito crianças por sala de aula. Também sei de lugares nos quais o número de auxiliares é insuficiente; há, da mesma forma a questão do planejamento. Eu percebi, quando trabalhei com alunos dos Anos Iniciais, que em geral as EMEFs conseguem se organizar melhor nesse aspecto. As EMEIs não têm como trabalhar sem planejamento e sem auxiliares. Sentimos-nos um pouco esquecidos. Considerar o planejamento dentro das horas-atividade seria fundamental para melhorar a qualidade. Já a questão da formação, por exemplo, não é mais um problema.

 

Como a senhora vê as condições materiais da Escolas de Educação Infantil no município? Há 12 creches na cidade que estão ou em construção, aguardando licitação ou cujas obras nem começaram. Para piorar, há um levantamento feito pelo Tribunal de Contas do Estado indicando um déficit de cinco mil vagas em Santa Maria.

Aqui perto mesmo há uma creche assim [referindo-se à creche da Nova Santa Marta, cujo prazo de término da construção é em junho mas só 19,3% foram executados]. Tem muita criança que fica sem vaga. Na Luizinho não há espaço físico para mais crianças. Essas creches novas desafogariam muito essa pendência. A atual estrutura não abarca toda a demanda. Aqui mesmo, até o ano retrasado, haviam turmas de tempo integral. Aí, devido à demanda, a Smed orientou que fizéssemos uma turma de manhã e outra de tarde. Cria-se então, outro problema: as mães trabalham o dia inteiro e não têm onde deixar os filhos durante um dos turnos. É algo que interfere bastante na qualidade da educação.

 

Segundo dados de 2009, apenas 19% das crianças do Brasil de 0 a 3 anos estavam em creches; e em 2011, 80% dos brasileiros de 4 e 5 anos estavam nas pré-escolas. Quais são as causas principais desse quadro?

Há uma meta do Plano Nacional de Educação quanto a isso: universalizar, até 2016, a Educação Infantil e atender, no mínimo, 50% das crianças de até três anos. No município, entretanto, avalio que estamos bem aquém desta meta. Há também uma demanda crescente por Educação Infantil e as ações tomadas para resolver o problema não estão sendo suficientes. A situação pode virar uma bola-de-neve. E a demanda crescerá ainda mais: a partir do ano que vem será obrigatório que as crianças de 4 e 5 anos estejam matriculadas. Hoje em dia é facultativo. De zero a três anos não há uma obrigatoriedade, mas a demanda é crescente – ou porque as mães precisam trabalhar ou porque estão percebendo a importância dessa fase da educação. No ano que vem, com a obrigatoriedade, a demanda certamente crescerá. Como absorverão essas crianças? Talvez os de quatro e cinco anos sejam prioridades, e aí o problema só é transferido para as crianças de zero a três anos. E embora não seja obrigatório, não é permitido negar o ensino às crianças mais novas. Esse será o desafio.

 

Quais são as consequências sentidas pelas crianças que ingressam direto no Ensino Fundamental?

Eu comecei a perceber isso quando passei a trabalhar com berçário. Há bastante diferença, principalmente no que se refere ao convívio com outras crianças. Através das interações com as crianças, as professoras e os objetos, é possível perceber que o desenvolvimento é mais rápido. Aqui buscamos desenvolver a liberdade e a autonomia da criança.

 * Entrevista publicada na edição 189 do jornal Primeira Classe.

 

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